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Até quando vamos deixar matar os defensores de tanta beleza?

A construção da Barragem de Belo Monte na Amazônia brasileira ameaça aniquilar culturas únicas, fazendo desaparecer tradições, rituais, línguas e conhecimentos da floresta. Español English

miguel pinheiro
17 March 2020
Uma criança indígena do rio Xingu, Brasil
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Imagem do documentário Terra Preta, de Miguel Pinheiro

Difícil imaginar um lugar com maior diversidade humana que a região do Médio-Xingu, no coração da Amazónia Brasileira. Adentrar na floresta é uma viagem a passados que se sobrepõem a uma velocidade estonteante, dos escravos usando a mata como esconderijo, aos seringais e seus colonos da borracha, à abertura da Transamazônica - estrada que rasgou a floresta como agente de “civilização” e trouxe pioneiros de todo o Brasil, até aos cosmopolitas empresários que chegaram com a ciclópica barragem Hidroelétrica de Belo Monte: gigantesca mas de limitada visão.

Estas ondas de migração foram desfilando aos olhos das populações nativas do lugar. As várias etnias indígenas locais são parte de um Brasil invisível, e guardiãs de cânticos e preces e práticas muito antigas, por eles inventadas nas encruzilhadas dos rios com a floresta. Durante séculos garantiram num pedaço de natureza o sustento e o saber para prosperarem por gerações, pelo cultivo da macaxeira e do cará, pela caça da paca e do tatu, pela pesca do tucunaré e da piranha muitas vezes feita diretamente do topo de suas casas de palafitas, que mais parecem as pernas esguias de um engenhoso Dom Quixote saindo da superfície da água, enquanto bem do lado as crianças se lambuzam da farinha ainda quente. É a terra que dá. Ou pelo menos, este era meu primeiro olhar de encantamento na aurora Amazônica.

Antes da construção da Barragem de Belo Monte, uma das maiores do mundo, Raoni Metuktire, liderança Kayapó e candidato ao Nobel da Paz de 2020, tentou avisar os povos em volta da devastação que se seguiria. Em vão. Pouco ele poderia fazer quando grupos organizados visitavam as aldeias, numa complexa teia de relações, prometendo às lideranças locais extraordinárias riquezas, “Cada aldeia terá uma pista de aterragem e cada chefe de aldeia um avião particular! Vocês serão ricos!!”, escutei de um arrependido cacique da etnia Xikrin.

A barragem só poderia ser construída com a permissão dos indígenas da região, porém nunca houve uma consulta livre, prévia e informada sobre quais compensações eles teriam direito, isto é, alguém que perguntasse a indígenas e ribeirinhos: o que é de vossa cultura? E, o que desejam como mitigação pelos impactos?

As várias etnias indígenas locais são parte de um Brasil invisível, e guardiãs de cânticos e preces e práticas muito antigas, por eles inventadas nas encruzilhadas dos rios com a floresta

Sem surpresa, o resultado é um agonizante curso de água, uma tristeza e uma revolta consumindo aqueles que caíram no logro. A quantidade e qualidade de água no Xingu diminuiu. Sem água morreram as árvores, que não produziram mais os frutos que alimentavam os peixes. Sem comida os peixes sumiram. A caça se mudou. A história se repetindo como a cópia de uma cópia, e uma forma de progresso que aniquila culturas únicas em todo o planeta, provocando a destruição dos rios, das florestas e a extinção da diversidade humana. Com o desagregar de cada comunidade, um modo de vida se perde. Desaparecem tradições, rituais, línguas, conhecimentos da floresta.

E o martírio aumenta com madeireiros e grileiros lhes invadindo a terra, garimpeiros sujando os rios, e o progresso que lhes introduz novas doenças. De acordo com o pesquisador norte-americano e prémio Nobel Philip Fearnside, a Barragem de Belo Monte entrega apenas 40% da energia prometida. O Brasil tem outras opções energéticas, mas as hidroelétricas têm um lobby forte porque suas construções envolvem mais dinheiro do que aquele que seria empregue em valorizar a Amazônia a partir de seus elementos dominantes: a água, o sol e a floresta.

Os Xipaya são um grupo de indígenas que desde o século XVII defende seus territórios de invasores. Juma Xipaya, a primeira mulher cacique do Médio-Xingu, tem a certeza que tudo em Altamira foi executado de forma propositada para não dar certo, para ter indígenas dependentes, coagidos, reféns, mendigos. Ela se tornou elemento de luta e resistência, e para isso saiu da sua aldeia e se entregou aos desafios da Universidade de Medicina. “Miguel, tem de ser rápido que tenho de apresentar um trabalho na aula de hoje”. Saio da entrevista com a alma alvoraçada.

Em 2017 o Brasil foi o país que mais ativistas ambientais matou no mundo. Em 2019, ficou em quarto lugar. Sento por uns minutos olhando o rio Xingu que se espreguiça por Altamira. Em Janeiro de 2020 houve um aumento de 74% no desmatamento da Amazônia, em relação ao mesmo mês de 2019.

Feitas as contas, o que se perde com este negócio dos indígenas virarem brancos? Em pleno Antropoceno começa a ser óbvio que a maior de todas as extinções é a do próprio ser humano. Nos tornamos progressivamente mais redundantes. E um dia que sejamos todos iguais, nada melhor que partir os espelhos do mundo e celebrar a monotonia de um imaginário único. Porém, enquanto esse dia não chega, é fincar pé e ajudar a Juma a defender a maior floresta tropical do mundo. Pensa comigo, até quando vamos deixar matar aqueles que defendem algo tão bonito?

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