Os tempos de uma pandemia trazem grandes desafios para ativistas de movimentos sociais progressistas.
Não é hora de ativismo de rua ou política nas praças. Com as liberdades restritas pelo distanciamento social, a realização de formas típicas de protesto se tornam impossíveis. A mobilização não é apenas difícil em locais públicos, mas também em nossos locais de trabalho, dada a limitação muito estrita do direito de reunião e a reduzida oportunidade de reuniões presenciais.
A emergência contínua limita nossos espaços mentais, desafiando nossa criatividade. Recursos individuais e coletivos se concentram na sobrevivência diária. A esperança, estimulante da ação coletiva, é difícil de sustentar, enquanto o medo, que tanto a desencoraja, se espalha.
As crises podem desencadear decisões defensivas egoístas, tornando o outro um inimigo. Dependemos da eficiência do governo e da opinião de especialistas.
A emergência contínua limita nossos espaços mentais, desafiando nossa criatividade
No entanto, os movimentos sociais geralmente surgem em momentos de grandes emergências, calamidades (mais ou menos naturais) e forte repressão às liberdades individuais e coletivas. No passado, as guerras provocaram ondas de contestação social.
Não é apenas verdade que "os estados fazem guerras e as guerras fazem estados", mas também que tremendas respostas sociais acompanharam conflitos militares, antes, depois e às vezes até mesmo durante esses conflitos. Tais revoluções testemunham a força do compromisso das pessoas em tempos de profunda crise.
Os tempos de profunda crise podem (embora não automaticamente) gerar a criação de formas alternativas de protesto. A ampla difusão de novas tecnologias permite a realização de protestos online, incluindo, entre outras, as petições eletrônicas que se multiplicaram nesse período (desde a busca por eurobonds até a solicitação de suspensão de aluguéis por alunos).
Marchas de carros foram convocadas em Israel. Os trabalhadores pediram mais segurança através de flash-mobs com os participantes mantendo uma distância segura um do outro. Na Finlândia, motoristas de transporte público se recusaram a aceitar os bilhetes de passageiros. Na Itália e na Espanha, mensagens coletivas de protesto ou solidariedade são enviadas de varandas e janelas. Por meio dessas formas inovadoras, os protestos pressionam os governantes e controlam suas ações.
Os movimentos sociais podem explorar os espaços de inovação que se abrem em momentos de incerteza
Diante da necessidade óbvia de transformação radical e complexa, os movimentos sociais também agem de várias maneiras que diferem de simples protestos. Primeiro, os movimentos sociais criam e recriam vínculos: se baseiam em redes existentes, mas também, na ação, as conectam e multiplicam.
Diante das manifestas insuficiências do Estado e, mais ainda, do mercado, as organizações dos movimentos sociais são constituídas – como ocorre em todos os países afetados pela pandemia – em grupos de apoio mútuo, promovendo ações sociais diretas, ajudando os mais carentes. Assim, eles produzem resistência, respondendo à necessidade de solidariedade.
Os movimentos também atuam como canais para fazer propostas. Utilizam conhecimentos especializados alternativos, mas também agregam a isso o conhecimento prático que emerge das experiências diretas dos cidadãos.
Ao criar esferas públicas alternativas, as organizações de movimentos sociais nos ajudam a imaginar cenários futuros. A multiplicação do espaço público permite a troca, contrastando a superespecialização do conhecimento acadêmico e facilitando a conexão entre o conhecimento abstrato e as práticas concretas.
A partir dessa fertilização cruzada, também surge a capacidade de conectar as várias crises – trazer à luz a conexão entre a disseminação e a letalidade do coronavírus e as mudanças climáticas, guerras, violência contra as mulheres, expropriações de direitos (e antes de tudo, o direito à saúde).
Embora a vida cotidiana mude drasticamente, também há espaços para reflexão sobre um futuro que não pode ser pensado como continuação do passado
Dessa maneira, a reflexão nos movimentos sociais aumenta e nossa capacidade de entender as causas econômicas, sociais e políticas da pandemia, que não é um fenômeno natural nem um castigo divino.
Dessa forma, os movimentos sociais podem explorar os espaços de inovação que se abrem em momentos de incerteza. Da maneira mais dramática, a crise mostra que é necessária uma mudança, uma mudança radical que rompe com o passado e uma mudança complexa que vai da política à economia, da sociedade à cultura.
Se em tempos normais, os movimentos sociais crescem com oportunidades de transformação gradual, em tempos de profunda crise, os movimentos são propagados pela percepção de uma ameaça drástica e profunda, contribuindo para as aberturas cognitivas.
Embora a vida cotidiana mude drasticamente, também há espaços para reflexão sobre um futuro que não pode ser pensado como continuação do passado.
A crise também abre oportunidades de mudança, evidenciando a necessidade de responsabilidade pública e senso cívico, de regras e solidariedade. Se as crises têm o efeito imediato de concentrar o poder, até sua militarização, elas demonstram, no entanto, a incapacidade dos governos de agir simplesmente pela força.
A necessidade de compartilhamento e amplo apoio para lidar com a pandemia pode trazer reconhecimento da riqueza da mobilização da sociedade civil. A presença de movimentos sociais poderia, portanto, contrastar com os riscos envolvidos em uma resposta autoritária à crise.
Além disso, as crises mostram o valor dos bens públicos fundamentais e sua complexa gestão por meio de redes institucionais, mas também pela participação de cidadãos, trabalhadores e usuários. Demonstram que a administração dos bens comuns precisa de regulamentação e participação das bases.
Em qualquer mobilização durante uma pandemia, o valor de um sistema universal de saúde pública emerge não apenas como justo, mas também como vital. Se as demandas de saúde no local de trabalho e a proteção universal da saúde como bem público são tradicionalmente demandas dos sindicatos e da esquerda, a pandemia demonstra a necessidade de reafirmar esses direitos e expandi-los para incluir os menos protegidos.
Em sua dimensão global, a pandemia desencadeia uma reflexão sobre a necessidade de defender o direito à proteção da saúde globalmente, algo frequentemente feito por organizações da sociedade civil como Médicos sem Fronteiras ou Emergency.
As crises demonstram que a administração dos bens comuns precisa de regulamentação e participação das bases
Claro, nada disso acontece automaticamente. Essas crises também são a ocasião para a acumulação de lucros por saques, experimentação por governos autoritários, por anomia social. A emergência e os choques criam ocasiões suculentas para os especuladores.
Mas se as crises aumentam a competição por recursos escassos, elas também aumentam a percepção de um destino compartilhado. Aumentar as desigualdades, em vez de reduzi-las, também gera um profundo sentimento de injustiça. Traz consigo a indicação de responsabilidades políticas e sociais específicas.
Como nas guerras, a demanda por terríveis sacrifícios à população alimenta reivindicações de direitos e participação na tomada de decisões. À medida que a mobilização coletiva cresce, também surge a esperança de uma mudança, de que outro mundo ainda é possível e, hoje, ainda mais necessário do que nunca.
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